Vagner R. Di Gennaro Jr.[1]
“O espaço se produz, de tempos em tempos, como estrutura arquitetônica, como representação cultural, como metáfora da experiência, como dimensão psicológica ou como possibilidade terapêutica. O espaço, de fato, é uma realidade complexa de interações, de representações, de cenas e de retro-cenas, sociais e pessoais” (VENTURINI).
A recente reforma psiquiátrica se dá, não apenas para defender os direitos dos portadores de doenças mentais, ao meu ver, também atua para mudar os padrões de pensamentos negativos e deturpados da sociedade perante o "louco". Para ajudar na mudança desse pensamento irei mostrar-lhes alguns fatos e o porquê muitos de nós pensam e agem com preconceito ao lidar com o tema da saúde mental.
Castel relata que Jules Falret, encarregado pela Sociedade Médico-Psicológica de Paris de visitar a aldeia belga de Gheel, onde alienados trabalhavam e habitavam em harmoniosa convivência com os camponeses, declarou na reunião de 30 de dezembro de 1861: " Fica-se verdadeiramente estupefato e assustado quando se vê os camponeses deixarem circular livremente os alienados no seio de suas famílias, de suas filhas e das crianças, confiar-lhes armas e ferramentas. (...) O sentimento que predomina em Gheel (...) é a confiança, na verdade exagerada, nos alienados e em seu caráter inofensivo" (Castel, 1978: 254). Mas, anteriormente, o próprio Pinel já afirmava: "Em geral é tão agradável, para um doente, estar no seio da família e aí receber os cuidados e as consolações de uma amizade tenra e indulgente, que enuncio penosamente uma verdade triste, mas constatada pela experiência repetida, qual seja, a absoluta necessidade de confiar os alienados a mãos estrangeiras e de isolálos de seus parentes" (Castel, 1978: 86).
A doença mental, objeto construído há 214 anos, implicava o pressuposto de erro da Razão. Assim, o alienado não tinha a possibilidade de gozar da Razão plena e, portanto, da liberdade de escolha. Liberdade de escolha era o pré requisito da cidadania (No período, a razão era o centro do universo). E se não era livre não poderia ser cidadão. Ao asilo alienista era devotada a tarefa de isolar os alienados do meio ao qual se atribuía a causalidade da alienação para, por meio do tratamento moral, restituir-lhes a Razão, e assim, a Liberdade.
No contexto da Revolução Francesa, com o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", o alienismo veio sugerir uma possível solução para a condição civil e política dos alienados que não poderiam gozar igualmente dos direitos de cidadania mas que, também, para não contradizer aqueles mesmos lemas, não poderiam ser simplesmente excluídos. O asilo tornou-se então o espaço da cura da Razão e da Liberdade, da condição precípua do alienado tornar-se sujeito de direito. A repercussão que teve a Revolução Francesa para a nova ordem mundial fez com que estes princípios alienistas fossem adotados na maior parte do mundo ocidental.
No Brasil a emergência do regime republicano foi acompanhada por uma série de mudanças sociais e econômicas que exigiram medidas rigorosas e eficientes de controle social, de modo a ordenar o crescimento das cidades e das populações. O reconhecimento e o gerenciamento de tais mudanças envolveram a articulação de diferentes disciplinas. A medicina, em associação ao urbanismo e à engenharia, começou a tomar o espaço urbano como propiciador de epidemias e contágios, assumindo progressivamente o caráter de intervenção sobre o corpo social. Os cuidados dirigidos, sobretudo, à saúde dos cidadãos ampliaram-se para a cidade e para a regulamentação de diferentes usos do espaço urbano. Os temas referentes à cidade constituíam-se como centrais, a multidão trazia consigo o sério risco de propagar diferentes epidemias, inclusive, de ordem psíquica. Cabia, então, aos médicos alienistas a tarefa de identificar e isolar os indivíduos tidos como nocivos e degenerados passíveis de contaminar todo o corpo social com o vírus da desordem. Era preciso expulsar o louco das ruas e do convívio da cidade como uma medida sanitária para a manutenção da ordem social.
E assim se consolidou o pensamento de que os "loucos" devem viver afastados do meio social e que, por "não terem o julgamento racional" não são propensos a manter a ordem e portanto, são ofensivos à sociedade. Esse pensamento poderia até ser aceitável há mais de dois ou três séculos atrás, mas já sabemos que a recuperação do alienado se deve em grande parte pela atenção e carinho dado pelos familiares e pessoas próximas e isso não vem acontecendo mesmo nos dias de hoje, onde diversos manicômios e hospitais psiquiátricos usam de maus tratos, ou tratam o indivíduo apenas como objeto de estudo da doença que porta.
Sendo assim a reforma visa primordialmente a desinternalização do indivíduo e a reinserção do mesmo à sociedade a ao seu lar, propiciando assim uma melhor recuperação além de haver o Serviço Residencial Terapêutico para atender aos doentes e dar apoio aos familiares.
"História da Loucura na Idade Clássica", de Michel Foucault, como se sabe, foi fundamental para reescrever a história da loucura, da psiquiatria e de toda a forma da sociedade moderna em lidar, não apenas com a loucura mas, ainda, com todas as formas de diferenças, desvios e divergências sociais e culturais.
Sabemos que o mundo do confinamento não serviu apenas à ordem política e econômica, que necessitava moldar o espaço público destinando lugares de inclusão e exclusão social. Serviu também, e nisso o Brasil foi praticamente inigualável, a uma promissora "indústria da loucura", como, com muita propriedade, a denominou Carlos Gentile de Mello, consolidada a partir do Plano de Pronta Ação do Ministro Leonel Miranda, que operou a maior privatização da assistência psiquiátrica de que se tem notícia. Tais empresários resistem às reformas no campo da saúde mental, mesmo sabendo que poderiam participar do novo sistema, uma vez que se propusessem a constituir os novos serviços, embora não fosse possível incluí-los, automaticamente, como veremos, no contexto da desinstitucionalização, já que esta não significa apenas a administração de serviços não hospitalares.
Alguns destes empresários, movidos pela ameaça que representa a reforma psiquiátrica, e não apenas o projeto Paulo Delgado, vêm aterrorizando familiares, deturpando os princípios da reforma, dizendo-lhes que o que se propõe é o fechamento dos hospícios e a devolução dos internos aos familiares ou o abandono dos mesmos nas ruas. Tal iniciativa já se faz presente na criação de uma entidade de familiares financiada por estes mesmos empresários, para oporem-se às reformas.
Outro setor que vem levantando questões contrárias ao processo da reforma é o acadêmico psiquiátrico clássico. Refutam a idéia de Franco Basaglia, de que a psiquiatria colocou o doente entre parênteses para ocupar-se do estudo da doença, tendo assim construído um objeto fictício, pois não existe a doença sem o sujeito de sua experiência. Seguindo a tradição husserliana, entende Basaglia que seria necessário promover uma redução fenomenológica, colocando a (doença mental) entre parênteses, para poder ocuparse do doente em sua experiência concreta de sofrimento. Este procedimento epistemológico inscrevese no contexto do primeiro uso da complexidade, tal como proposto por Isabelle Stengers, que está no desafio de resgatar a singularidade da operação que o conceito oculta, sem que esse desmascaramento signifique "descobrir" a verdadeira realidade do objeto, mas sim reabrir a possibilidade de sua re-complexificação.
Carvalhal Ribas costumava dizer que o mal maior da psiquiatria era o doente mental que não se dobrava ao saber psiquiátrico. Mesmo assim a psiquiatria não aceita debater seu paradigma.
Um argumento de outra natureza, comumente utilizado por estes mesmos setores, é o de que a reforma foi tentada e fracassada em outros países. Utilizam como exemplo mais comum a experiência dos E.U.A., que é a qual a experiência brasileira explicita maior distanciamento, por ter reduzido o conceito de desinstitucionalização à meras medidas de desospitalização, sem a necessária construção de uma nova rede de serviços e cuidados. Em todo o caso, o argumento corresponderia a dizer que, uma vez que ainda se cometem crimes a violências contra negros, mulheres a crianças, a luta contra esta violência não teria nem eficácia nem razão de ser. Finalmente, o modelo psiquiátrico clássico favorece ainda o modelo profissional "liberal", que reduz a atitude terapêutica a sessões individuais, à psicoterapias, à administração de fármacos – sem um maior esforço cotidiano –, ou a uma verdadeira tomada de responsabilidade, como proposto por Giuseppe Dell'Acqua, isto é, o ocuparse do doente em sua experiência-sofrimento.
Vimos que não estamos falando de fechar hospícios (ou hospitais psiquiátricos, se preferirem) e abandonar as pessoas em suas famílias, muito menos nas ruas. Vimos que não estamos falando em fechar leitos para reduzir custos, no sentido do neoliberalismo ou no sentido do enxugamento do Estado (aliás, em princípio, a rede de novos serviços e cuidados tende a requerer maior investimento não apenas técnico e social, mas também financeiro). Estamos falando em desinstitucionalização, que não significa apenas desospitalização, mas desconstrução. Isto é, superação de um modelo arcaico centrado no conceito de doença como falta e erro, centrado no tratamento da doença como entidade abstrata. Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a subjetividade. O doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico. A desinstitucionalização é este processo, não apenas técnico, administrativo, jurídico, legislativo ou político; é, acima de tudo, um processo ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. De uma prática que reconhece, inclusive, o direito das pessoas mentalmente enfermas em terem um tratamento efetivo, em receberem um cuidado verdadeiro, uma terapêutica cidadã, não um cativeiro. Sendo uma questão de base ética, o futuro da reforma psiquiátrica não está apenas no sucesso terapêutico-assistencial das novas tecnologias de cuidado ou dos novos serviços, mas na escolha da sociedade brasileira, da forma como vai lidar com os seus diferentes, com suas minorias, com os sujeitos em desvantagem social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTEL, R., 1978. A Ordem Psiquiátrica: A Idade de Ouro do Alienismo. Rio de Janeiro: Graal.
AMARANTE, P. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 491-494, jul/set, 1995.
CARVALHO M.(Org.) Os espaços sem tempo: Os Vazios do Manicômio. Rio de Janeiro: Booklink Publicações, 2001.
[1] Estudante de Psicologia da Universidade Paulista - UNIP, Araçatuba.